«SENHOR, eu te amo!», estas foram as últimas palavras sussurradas pelo Papa emérito Bento XVI, segundo o enfermeiro que o acompanhava, na noite antes da sua morte, e que podem ser tidas como que a síntese da vida deste grande Papa e um dos maiores teólogos da História da Igreja, que com simplicidade e uma incansável procura por Deus mostrou, como ele próprio disse, que «o homem tem em si uma sede de infinito, uma saudade de eternidade, uma busca de beleza, um desejo de amor, uma necessidade de luz e de verdade, que o impele rumo ao Absoluto».
O amor de Deus por Joseph Ratzinger manifestou-Se na vida da sua família logo desde o primeiro encontro dos seus pais. O pai, também Joseph Ratzinger, polícia de profissão, após o fim da Primeira Guerra Mundial e uma caótica revolução na sua região, a Baviera, decidiu que estava na altura de casar e constituir família, tendo escrito um anúncio, num jornal católico local, à procura de esposa, onde se apresentou: “empregado, estado civil solteiro, católico, quarenta e três anos de idade… procuro matrimônio, o mais rápido possível, com uma boa jovem católica”. Em pouco tempo, uma jovem, chamada Maria, respondeu ao anúncio, casaram e tiveram três filhos. Quando Joseph Aloisius Ratzinger nasceu, o filho mais novo do casal, já o seu pai tinha mais de cinquenta anos.
Desde jovem o seu dom natural se fez notar e a providência divina agia novamente na vida de Joseph Ratzinger, quando um dos seus primeiros livros, o best-seller “Introdução ao Cristianismo”, textos das suas aulas como professor de Teologia, chegou às mãos do então Papa Paulo VI. Anos depois, após a morte do cardeal de Munique, mesmo sem grande experiência pastoral, o então padre Ratzinger, num intervalo de menos de um ano e meio, foi ordenado Bispo, declarado Arcebispo, investido Cardeal e participou do Conclave que elegeria o Papa João Paulo I.
Um dos momentos mais marcantes da vida de Joseph Ratzinger foi o seu relacionamento com o Papa João Paulo II. Quando o Papa polaco visitou a Alemanha, em 1980, o Cardeal Ratzinger foi o responsável por o acompanhar durante toda a viagem. Um ano depois, chegou o convite para ser Prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé, em Roma, uma missão marcada por muitos trabalhos que não lhe traziam prazer, conforme confessou ao jornalista Peter Seewald. Por três vezes, uma delas aos 75 anos de idade, pediu para se tornar emérito e trabalhar na biblioteca do Vaticano, pedido esse que foi sempre negado por João Paulo II, novamente, por providência de Deus.
O Senhor preparava-o para uma missão ainda mais exigente, tornando-o Bispo de Roma. A partir do momento em que apareceu para abençoar a multidão reunida na Praça de São Pedro, tornou-se, rapidamente, num dos alvos preferidos da Imprensa anti-católica. Numa aula magna em Rastibona, na Alemanha, logo após ter feito uma citação de um texto muçulmano do Século XIII, foi imediatamente atacado pelos jornais como propagador de guerra religiosa, mas só quando o texto foi lido na íntegra viram que as suas ideias iam completamente na direção contrária ao que havia sido divulgado pela Imprensa. Meses depois, essa mesma aula recebeu o prémio da Academia de Literatura da Alemanha pelo melhor discurso do ano. Outro conhecido “incidente” ocorreu quando, na Exortação Pós- -Sinodal Sacramentum Caritatis, sobre a Eucaristia, disse que a segunda união matrimonial era uma “piaga”, palavra italiana. Mais uma vez, foi imediatamente criticado, por vários jornalistas a nível mundial, por supostamente ter afirmado que a segunda união matrimonial era uma praga. Dias depois, após ter sido confrontado o texto original, a mesma mídia percebeu que a tradução para “piaga” não era praga, mas sim, chaga, contudo, a retratação para o equívoco foi mínima. São inúmeros os exemplos em que Bento XVI, silenciosamente, foi mártir de uma Imprensa oportunista que primeiro condena e só depois verifica a veracidade das suas notícias.
Muito mais do que um intelectual, o Papa Bento XVI foi um verdadeiro profeta dos nossos tempos, um instrumento de Deus como resposta à ditadura do relativismo contemporâneo que pensa que a verdade deve adequar-se às conveniências transitórias e utilitaristas do Ser Humano. Simples e determinado, como bispo, no verdadeiro sentido da palavra, foi um fiel guardião do Depósito da Fé, sem medo de condenar os abusos de “teólogos” vinculados a ideologias totalitárias que interpretam e usam a religião para fins meramente políticos. Diante de uma Europa cada vez mais secularizada, acolheu a todos, mas não deixou de chamar o mal pelo seu nome, mostrando que a felicidade está em caminhar na verdade, e que a caridade sem verdade é puro assistencialismo, dando o exemplo com o testemunho da sua própria vida, fazendo jus às suas próprias palavras, que «as vias do Senhor não são confortáveis, mas nós não somos criados para o conforto, mas para as coisas grandes, para o bem».
Homem de personalidade tímida, mas com a clareza e coragem que a Humanidade precisa nos momentos mais difíceis, mostrou que a prioridade da Igreja deve estar na conversão pessoal dos seus membros, inclusivamente da hierarquia eclesiástica, sublinhando que o Sacerdócio não é uma profissão e que não basta realizar uma «pastoral da manutenção» onde tudo, aparentemente, está no lugar, mas não há mudança na vida das pessoas. Num dos momentos de crise da Igreja, diante dos crescentes casos de pedofilia, chamou as vítimas para conversar, chorou pessoalmente com elas e com os seus familiares e não poupou os culpados. Em 2009, no seu testamento escrito, humildemente, pediu perdão a todas as pessoas que, porventura, tenha prejudicado durante a sua vida. Quando questionado sobre qual o local em que gostaria de ser enterrado, na Basílica de São Pedro, fez questão que fosse num local simples, no subsolo.
No momento em que percebeu que as suas forças físicas já não eram suficientes para a missão a que o Senhor o chamou, deu mais um sinal de amor à Igreja, e sem pensar na auto- -imagem recolheu-se para servir ao Senhor com as suas orações. Da mesma forma que foi um discreto e fiel servo do seu antecessor, o Papa João Paulo II, assim viveu o seu relacionamento com o seu sucessor, o Papa Francisco, que, dias antes da sua morte, pediu orações pelo Papa emérito, aquele que – segundo ele – no silêncio das suas orações sustentava a Igreja. Para os que não foram agraciados de serem contemporâneos do Papa Bento XVI, muitos seguramente se aproximarão do Senhor depois de lerem os seus escritos e o recordarão como aquele que combateu o bom combate, permanecendo na fé e amando o Senhor, mesmo quando teve de tomar decisões impopulares, mostrando que, de facto, aquele que encontrou o verdadeiro amor de Deus é capaz de deixar tudo para permanecer com esse tesouro, com a certeza que nunca estará sozinho e ser capaz de dizer no fim da sua vida: «Senhor, eu te amo!».
Artigo Publicado em O Clarim