Antes de abrir os olhos e os ouvidos daquele homem, Jesus abre-lhe o coração, tornando-o rico de fé e esperança
«Trouxeram-lhe um homem que era surdo e mal podia falar, e pediram que impusesse as mãos sobre ele» (Mc 7, 32). O Evangelho deste Domingo, que à primeira vista fala-nos sobre a cura de um surdo-mudo, mostra-nos que as curas realizadas por Jesus eram muito mais do que meros actos de recuperação física. Como Salvador, Ele deseja salvar a pessoa como um todo – corpo e alma. Baseados na riqueza deste texto, convido-vos a meditarmos juntos como este processo foi realizado na vida do enfermo do texto narrado por São Marcos (Mc 7, 31-37).
Quando trouxeram a Jesus aquele homem, que era surdo e mal podia falar, e Lhe pediram que impusesse as mãos sobre ele, os discípulos, provavelmente, imaginaram que Jesus realizaria um milagre de forma rápida, colocando as mãos na cabeça do doente, dizendo que ele estava curado e que continuasse a prosseguir o seu caminho com fé. Contudo, o que aconteceu foi bem diferente: Jesus “pára-lo, toma-o à parte, esquecendo por um instante a multidão que o esperava; toca-lhe com os dedos nos ouvidos e na língua (…), depois grita: abre-te! E o surdo-mudo fala e ouve” (Cardeal Raniero Cantalamessa).
Antes de cuidar da cura física, Jesus restituiu a dignidade àquele homem. Como surdo-mudo, seguramente ele vivia excluído da sociedade. Porém, diante do Messias, frente-a-frente com Ele, aquele enfermo sente-se novamente uma criatura humana com toda a sua dignidade. Ao retirá-lo do meio da multidão, Jesus sabia que aquele homem precisava mais do que uma mera cura física, ele precisava de recuperar a sua dignidade, pois durante anos foi tratado como um peso social. Com este gesto de Cristo, em apenas alguns segundos, ele voltou a sentir-se amado, especial e único, como um verdadeiro filho de Deus. Por outras palavras, antes de abrir os olhos daquele homem, Jesus abriu o seu coração, tornando-o rico de fé e esperança. Tal pode ajudar-nos a compreender a pedagogia divina. Muitas vezes reclamamos que as graças de Deus não acontecem na nossa vida, mas o tempo de Deus não é o nosso tempo. Deus não demora, Deus educa-nos e salva-nos como um todo. Às vezes, antes de curar-nos fisicamente, levando-nos a rezar com perseverança, Ele fortalece primeiro a nossa fé. Tal como aconteceu com este homem, Jesus continua a parar e a olhar-nos nos olhos, como pessoas únicas – por exemplo, cada vez que comungamos e fazemos um piedoso momento de acção de graças; ou quando nos aproximamos do sacerdote para o sacramento da reconciliação, realmente arrependidos dos nossos pecados; ou mesmo numa oração pessoal, sem distracções; ou, por último, quando amamos alguém sem esperar nada em troca, especialmente os que mais sofrem.
Só depois, Jesus o curou fisicamente, impondo-lhe as mãos, colocando os dedos nos ouvidos daquele enfermo e tocando-lhe a língua com saliva (Mc 7, 33). A Sagrada Escritura mostra, com certa frequência, a imposição das mãos como gesto indiciador da transferência da força ou bênção (Gen 14, 14; 2 Reis 5, 11; Lc 13, 13). Na linguagem da “Revelação” os dedos simbolizam o poder da acção divina (Ex 8, 19; Sl 8, 3; Lc 11, 20). A saliva, por sua vez, era reconhecida socialmente pelo seu valor terapêutico em pequenas curas. Com Jesus, a cura remete-se a uma enfermidade de nascença e acontece de forma imediata. Com estes símbolos e sem negar os meios naturais, Jesus revela ser verdadeiramente Deus e homem. Isto ajuda-nos a aprender que Cristo não é um agente social e político que veio restabelecer a ordem e justiça terrena; Ele é o Salvador que pode e quer continuar a realizar milagres nos dias de hoje. Para isso, normalmente, Jesus utiliza meios naturais como medicamentos, produtos naturais e outros meios criados pelos homens com a sabedoria dada por Deus. Pelo que, podemos rezar, pedir a ajuda divina, mas devemos também fazer a nossa parte, procurando os meios humanos mais ordinários, no sentido de mais comuns.
No processo de cura daquele homem, Jesus levanta os seus olhos ao céu e gemendo grita: «Effatha» (Mc 7, 34). Segundo São Beda, quando levantou os seus olhos ao céu, Nosso Senhor desejou revelar de onde vinha a cura e para onde todo o clamor deve ser feito. São Marcos também destaca a força deste exacto momento ao manter a palavra “Effatha” no seu original em Aramaico, língua falada por Jesus, evidenciando como aquele facto foi extraordinário, impactante e inesquecível na vida dos apóstolos e que deveria ser preservado na sua forma original.
O texto termina ao sublinhar que todos estavam estupefactos e comentavam: “fez tudo bem: faz ouvir os surdos e falar os mudos” (cf. Mc 7, 37). Esta passagem recorda-nos as palavras narradas no livro do Genesis, no final de cada dia da criação: “e Deus viu que era bom” (cf. Gen 1 10; 1, 12; 1, 18; 1, 21; 1, 25), “e Deus viu tudo o que havia feito; e era muito bom” (cf. Gen 1, 31). Isto mostra-nos que Jesus veio restaurar a criação realizada pela bondade da obra trinitária. Num mundo sedento de esperança, devemos testemunhar que Jesus é verdadeiramente Deus e homem, continua caminhando connosco e pode ser encontrado, adorado e recebido no sacramento da Eucaristia. Num mundo com tanta confusão sobre a identidade de Jesus, Ele revela ser verdadeiramente Deus e homem, preocupado com a salvação do homem no seu todo. Num mundo com tanta pressa e desejo de praticabilidade, Jesus mostra que nós também devemos parar, olhar nos olhos das pessoas e antes de querer abrir os ouvidos de alguém ou mesmo ouvir as palavras vindas dos lábios delas, precisamos cuidar e abrir-lhes o coração com gestos de fé, carinho e paciência.
P. Daniel Antonio de Carvalho Ribeiro, SCJ
Este artigo foi publicado anteriormente no Jornal “O Clarim”, da Diocese de Macau/China, em português de Portugal, antes do acordo ortográfico.
Padre Daniel Ribeiro, SCJ. Mestre em Educação e Doutor em Estudos Religiosos (Teologia), pela Universidade de São José.